5 de julho de 2011

der Reue

  Estou cansada dele falando comigo como se eu fosse algo, não alguém. Quem ele pensa que é para me tratar assim, como um objeto? Que eu fiz a ele para ser tratada assim? Só penso no bem-estar dele, faço o possível e impossível para agradá-lo. E o que ganho? Apenas ignorância e maus tratos. Meu pulso ainda dói da última vez que ele brigou comigo. Ele fica com aqueles olhos insanos, eu me assusto quando ele fica assim, dá medo. O que dói mais é meu coração, que continua incansavelmente a apanhar, sem reagir. O que infernos posso fazer se o amo? Devo estar fazendo algo de errado mesmo. Não consigo agradá-lo. Está começando a ficar insuportável viver assim.Aquela vagabunda continua sentada na frente da porta do meu quarto, arranhando-a com aquelas unhas compridas de puta. Canso de dizer pra ela cortar aquelas garras, e ela me ouve?! Juro que se estiver pintada de rosa ainda, arranco aquela merda na base da porrada. Aquela idiota pensa que ainda tem 16 anos, pra ficar usando aqueles vestidos curtos e se maquiando como uma putinha com hormônios a flor da pele, louca atrás dum macho pra foder. Ainda quer reclamar quando a trato mal! Maldita hora que fui me apaixonar por essa desgraçada: só estragou minha vida e me deu dor de cabeça.
  Eles estão brigando novamente. Todo final de semana é a mesma coisa. Ele chega num porre federal e ela está em casa chapada para relaxar após uma semana de trabalho numa jornada de 12 horas. Basta ela piscar para ele enfurecer feito louco e berrar feito doente. Não há necessidade de motivos: um oi é motivo suficiente para uma enxurrada de palavrões e para começar o barulho de móveis quebrando. Barulho que sempre me acorda na madrugada, quando estou no décimo sono. Idiota que fui, tinha que ter alguma coisa errada quando me mudei para esse barraco aqui. O aluguel tava bem barato, até que bem localizado, mas a imobiliária maldita não me falou que eu tinha vizinhos doentes que adoravam fazer barracos no meio da madrugada dum fim de semana! O pior não é nem a briga, é quando eles fazem as pazes. Aqueles putos transam a noite inteira, parecem cachorros no cio. A merda, é que ela é gostosinha e suporta um bêbado ridículo como aquele.
  Adoro quando ele faz as pazes comigo. Vejo daí o homem com quem me casei, querido, carinhoso e o melhor: excelente na cama. Fazemos amor a noite inteira! É incrível, vejo que ele nem tem fôlego de vez em quando, mas mantém o ritmo só para me agradar, tenho certeza. Deitada nos braços dele, eu penso nos adoráveis filhos que teremos: quero, no mínimo, três guris correndo pra lá e pra cá nesta casa. Não temos muito espaço, mas a gente dá um jeitinho. Acho que amanhã ele para mesmo de beber, ele falou com tanta convicção desta vez! Ele é mesmo o homem da minha vida, tenho que agradecer a Deus por tê-lo posto no meu caminho e por ter feito de mim a mulher com quem ele passará a vida.
  Só tô com essa vadia porque ela fode bem ainda. É a única coisa que compensa todo o trabalho e dor de cabeça que ela me dá. Agora ela tá deitada no meu braço, com aquele olhar cheio de sonhos. Se ela vier com aquele papo de ter filhos de novo, vai dar bosta. Este barraco que a gente mora tem nem espaço pra nós dois, quem dirá pra filhos. Três ainda, que ela quer ter! Ela pensa que cago dinheiro pra sustentar três merdinhas, correndo e destruindo a casa inteira?! Acho que os tapas que ela dá vez em quando tá afetando mesmo a cabeça dela. Pra ela calar a boca, tive que falar, de novo, que ia parar de beber amanhã. É muito burra, ela acreditou de novo. Só bebo pra aguentar sempre o mesmo papo dela que eu tenho que melhorar, e isso e aquilo. Já coloco a porra do dinheiro dentro de casa, e comida em cima da merda da mesa, o que mais ela quer?! Carinho, amor?! Vá se foder, não tenho quinze anos para ficar me preocupando com agrados.
Ele bateu a porta com força, aos berros. São cinco da manhã. Não é normal eles brigarem a essa hora. Acho que alguma coisa tá errada. Ela gritou que vai se matar se ele a tratar assim de novo. Ele a mandou a merda, dizendo que ele é assim e não ia mudar só porque ela queria. E que se não tivesse bom, é para ela pegar suas trouxas e se mudar. Soltou uma enxurrada de palavrões, arremessou a porta da frente, ligou o carro, e provavelmente foi pro bar. Liguei pra polícia, vai saber em que estado ele deixou ela.
  Não é o primeiro, nem o segundo, muito menos o terceiro chamado que atendo naquela região. Mais especificamente daquela casa. É um casal que vive brigando e incomodando os vizinhos, que volte e meia ligam para nós para que tomemos alguma providência. Como se pudéssemos fazer algo, mas vamos mesmo assim. Normalmente ele está bêbado e fica ameaçando ela aos gritos de todas as formas possíveis. Algumas vezes eles quebram alguns móveis, outras vezes arremessam alguma coisa e arrebentam a janela do vizinho, como já aconteceu. Não é um casal exemplar, por assim dizer. Cheguei lá e conversei rapidamente com o vizinho, que me explicou um pouco a situação. Ele disse que chamou porque achou estranho o silêncio logo após a saída do marido. Normalmente ela sairia correndo atrás dele, implorando pra ele ficar. Após essa breve conversa, fui até a casa e bati na porta, esperando alguma resposta. A porta se abriu assim que toquei nela. Já que a casa era pequena, rapidamente olhei em todos os cômodos e não vi um sinal dela. Estranhei. Parado na sala, reparei que a porta do banheiro estava fechada. Bati na porta, ninguém respondeu. Tentei abri-la, estava trancada. Chamei a mulher, novamente ninguém responde. Esperei um pouco, e a chamei de novo. Nada ainda. Uma leve angústia e um mau pressentimento se apossaram de mim. Forcei a porta. Apesar de a casa estar caindo aos pedaços, as portas eram resistentes ainda. Fiquei realmente angustiado, aquele aperto no peito. Meti o pé na porta. Entenda, não sou novato, aliás, tenho anos de experiência, mas eu não estava preparado para o que eu vi.
  Ele nunca falou comigo naquele tom. Eu nunca o vi tão furioso. Eu... Eu só quis fazer algo diferente, agradá-lo, não imaginei que ele ficaria tão bravo assim. Uma amiga disse que fez pro marido dela e ele havia adorado! Os olhos dele brilhavam de ódio, ficaram insanos duma forma que nunca vi. Ele... Ele me chamou de puta. Que para eu fazer o que havia feito com ele, devo ter dado para metade dos homens da cidade. Eu o amo! Nunca o trairia! Não consigo agradar meu marido. Que porcaria de esposa sou eu? Tento de tudo, esforço-me para preparar a janta perfeita, mesmo após doze horas trabalhando. Mas ele sempre reclama, então devo fazer algo errado mesmo. Acho que estou muito cansada quando faço, acabo errando em alguma coisa. A camisola, que eu pensava ser sexy e achei que o agradaria, ele a despedaçou na minha frente. Acho que ele tinha razão, ela era muito vulgar. Falho como mulher, como esposa. Que espécie de esposa sou eu? Sou um fracasso ambulante que não consegue satisfazer o próprio homem que escolheu para viver toda vida. Ele merece alguém melhor, alguém que o satisfaça, que cozinhe bem, que dê o amor que ele necessita. Eu... Eu não quero continuar assim, não mereço viver. Eu... Não quero mais.
  Havia sangue no teto. Na parede. No chão que estava escorregadio. Tive que segurar o vômito. Não esquecerei o que vi. Como ela conseguiu se cortar daquela maneira, tantas vezes e em tantos lugares. No tronco, nas pernas, os braços... O rosto! Deus, por que alguém faria aquilo consigo mesmo? Por que isso? No espelho, estava escrito, com sangue: "não sem você". Sai rapidamente do banheiro e corri para fora da casa, ajoelhei-me ao lado da escadaria e vomitei demoradamente. Com a mão apoiada na parede, liguei e pedi ajuda e uma ambulância.
  Nem deu tempo de dormir. Conversei com o policial, um conhecido já, das vezes que o chamei quando os vizinhos se descontrolavam um pouco. Assim que comecei a pegar no sono de novo, ouvi um escarcéu na casa dos vizinhos. Curioso que sou, fui olhar na janela. Havia surgido mais algumas viaturas, havia uma faixa amarela no perímetro da casa e uma ambulância. Continuei olhando, vi o policial que atendeu meu chamado conversando com outro, parecia explicar alguma coisa. Ele estava com uma cara péssima, meio pálido, e tinha uma mancha no uniforme, que não tinha quando ele me atendeu. Quando vejo uma maca saindo da casa, com algo sob um lençol, entendo perfeitamente o que aconteceu. Principalmente quando vejo um braço pendendo da maca, e no dedo anelar, duma mão com unhas bem feitas e pintadas com um rosa claro simpático, uma aliança de ouro. Senti uma pequena pena. Ela era uma mulher linda, um corpo de parar trânsito. Pena. Mas é a vida, não é? Uns morrem, outros vivem. Bateu um sono forte, deitei e dormi.
Estava estacionado do lado de fora do bar, na parte de trás. Liguei para casa, demorou um pouco e ninguém atendeu. Imaginei que aquela idiota devia estar chorando no quarto. Disquei de novo, queria saber se ela estava bem. Acho que acabei falando um pouco mais do que devia. Eu gosto dela, mas ela consegue realmente me irritar muito de vez em quando. Agora que me toquei: ela disse que ia se matar, e eu a mandei a merda. Ela nunca disse isso antes. Ela não... Merda, por que ela não atende essa bosta de telefone?! Ligar de novo. Um... Um... Homem atendeu. N... Não. Perguntei quem era. Ele disse que era da... Polícia. Perguntei o que ele estava fazendo ali. Respondeu-me que alguém se suicidara e perguntou quem eu era. Desliguei. Sentei-me no chão. Deus, como chorei. Eu a trataria melhor se soubesse que a machucava tanto. Eu... Eu... Por que ela fez isso comigo? Deus, eu não presto, sou o pior homem da Terra, sou um monstro, matei minha esposa, mulher que me suportava e me amava nem o Senhor sabe como. N... Nunca mais verei aquele sorriso faceiro, os cabelos loiros desarrumados em meus braços?! Idiota! Por que ela fez isso comigo? Eu a amava. Não! Se eu a amava como a tratava daquela forma? Ela era um doce, e eu um cavalo, estúpido. Eu... Não posso... Con... Conviver com isso. Deus perdoe-me, por favor.
  O colega me disse que alguém havia ligado, perguntado sobre o que ocorrera e desligado quase no mesmo instante. Suspeitei que fosse o marido. O vizinho já tinha me dito que o marido costumava ir num bar não muito longe de lá. Precisavámos conversar com ele e explicar a situação, então seguimos para o bar. Assim que chegamos, uma jovem, que provavelmente trabalhava lá, quase pulou na nossa frente, aos berros. Entre murmúrios, lamentos e gaguejadas, ela me disse o que havia ocorrido. Escapou de minha boca um sonoro 'merda', que a assustou. Desculpei-me, deixei-a com o colega da viatura e rumei aos fundos do bar, para ver uma multidão ao redor duma caminhonete velha. Alguns minutos para dispersar todo mundo, e parar para visualizar a cena. Ele estava sentado no banco do carona, com um revólver na mão direita e havia pedaços da sua cabeça na janela esquerda do carro. E tinha um pequeno caderno com uma caneta bic preta presa à ele, com várias folhas escritas, jogado no banco do motorista. Dizia:
  Meu anjo perdoe-me por ter sido um monstro contigo. Por algum tempo, tentei ser o melhor pra ti, esforcei-me de todas as formas possíveis. Mas uma sequência de eventos ruins e azares da vida tornaram-me uma pessoa nojenta e mesquinha, e foquei toda minha raiva em quem menos devia: em ti, meu amor. Pergunto-me, agora que vejo tudo, como aguentou por tanto tempo isso? Se soubesse como me arrependo de tudo que fiz contigo, dos olhares aos gestos, das palavras aos berros, dos porres às agressões. Sei que agora está num lugar melhor, onde não haverá ninguém como eu para machucá-la. Deus perdoe-me por ter faltado aos meus deveres como marido, e a perdoe por ter partido dessa forma. Sei que não é correto, mas era a única forma que ela enxergou para livrar-se de mim. Não a culpe, coloque todo o peso desse ato em mim, que o motivou e justificou. Perdoe-me por fazer o que faço agora, mas preciso livrar-me desta dor insuportável que está no meu peito.
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escrito em 13 de janeiro de 2010.

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