5 de julho de 2011

Âncora

Do alto daquele edifício, ela admirava as nuvens. Gostava de fazer aquilo, há anos fazia. Sentava-se numa beirada, cruzava suas pernas, apoiava-se com as mãos atrás. Colocava seus óculos escuros, ligava seu iPod: ouvir Nick Drake nesse momento para ela era especial: sua voz doce a relaxava. Adorava relaxar lá. Mas hoje o objetivo não era só admirar as nuvens.
Ela lembrava cada palavra que ele tinha dito: da peculiar expressão de tristeza sobre seu rosto, com aquele olhar que berrava seus sentimentos. Olhos úmidos, rosto tenso, mas resoluto em seu objetivo. Desvantagens de conhecê-lo tão bem: sabia o que viria. Deduzia por cada movimento que ele fazia: gestos com as mãos, que estavam nervosas, olhares rápidos, que não conseguiam encarar seus olhos de jade. Seus lábios desenhados trêmulos: lábios que ela adorava.
Ele estava sentado, pois suas pernas bambeavam, ela já tinha visto. Sentou-se no colo dele e ele abraçou-a forte. Ela pode ouvir seu coração descompassado, fraquejante. Era algo que se esvaia.
Chorou, chorou como se sua família houvesse a abandonado. Chorou como se fosse a pessoa mais desprezível desta terra e as pessoas a olhassem com repulsa. Chorou com ódio, como só as pessoas agora solitárias podem chorar. E quando acabou a água do seu corpo, chorou sangue: todo aquele sangue que um dia ela havia derramado por ele, no máximo dos seus esforços para fazê-lo bem.
Amor intenso tranforma-se facilmente em ódio absoluto: não mais desejava afagar seus cabelos, mas arrancá-los com sua mãos aos montes, infligir-lhe a maior dor. Não mais beijar aqueles lábios doces, mas mordê-los num furor descontrolado. Não mais ver seus céus por trás de vidros, mas arrancá-los numa histeria descomedida. Não mais abraçar seu corpo claro, mas arranhá-lo até desfigurá-lo por completo.
Ela estava pensativa lá em cima. Havia considerado bastante, e decidido que iria ferí-lo onde o marcaria por todo sua vida: sua alma. Curiosamente, no seu iPod tocava "heart and soul: one will burn". Talvez ambos, pensou ela, sorrindo consigo mesmo. E em movimentos rápidos, como âncora de navio, afundou na imensidão: ainda assim, sorridente: agora estava livre.
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escrito em 15 de outubro de 2009.

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