30 de maio de 2013

Raul / Lilah

Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Arnaldo Antunes

Eu entrei naquele mesmo restaurante chinês,
escolhi minha comida e sentei-me na mesma mesa.
Então a criança, que sempre está ali, correu por mim.
E eu, diferentemente, comecei a chorar e a chorar.
Queria abraça-la, mostra-la o quão carinhoso posso ser,
numa urgência e necessidade que só meu coração explica.

A urgência vem duma insegurança profunda
de quando surgirá a minha criança.
Terei eu um dia,
aquele pequeno correndo pelos restaurantes,
abrindo sorrisos alheios, inclusive o meu,
com a vida pulsante que há em toda criança
que energiza a mais triste das vidas e
ilumina os cantos mais escuros de uma alma?

Onde está  aquela criança linda pr'eu chamar de minha,
pequena criação divina pr'eu me doar por completo?
Onde está aquela criaturinha única, estrela do meu céu,
pequenina e astuta que me levará à alegria absoluta?

Sonho com você, que ainda não existe.
E me corrói por dentro...

Será que um dia você existirá?
Os sonhos se tornam realidade?

29 de maio de 2013

Ar XI

Escuta, não quero contar-te do meu desejo
Quero apenas contar-te da minha ternura
Manuel Bandeira

só nós dois
meu amor
não cabemos em mim ou em você
como toda gente tem que não ter cabimento
para crescer
Arnaldo Antunes

I

Isso não tem nada a ver com ciúme.
É apenas que teu cheiro, teu perfume,
me enlouquecem.

Eu fica completamente fora de mim;
ver tuas cores radiantes é o estopim:
dissolve-se a razão.

(Dos teus Campos,
eu peço apenas
rosas e lírios)

II

As palavras que vêm de ti rodopiam no ar.
Vida própria, criam imagens e mundos,
remexem com meu eu mais profundo
e não há Tabacaria que faça eu voltar.

E eu não ligo se do meu amor eu dou Bandeira:
por ele e por ti eu puxo a faca da algibeira,
por ele e por ti eu corro e paro na beira:
por ele e por ti eu pulo da ribanceira.

Pra chamar tua atenção, faço um iê iê iê,
mexo pra cá, mexo pra lá, faço um balancê,
recito Murilo e grito de dentro da gaiola
que você jamais sairá da minha cachola!

III

Então chega de lero-lero.
É em ti, e apenas em ti,
que tenho tudo que quero.

25 de maio de 2013

Discórdia

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve
Arnaldo Antunes

Não há nada que satisfaça
o passageiro que por ali passa:
nada que a passageira faça,
trespassa aquela carapaça.

Não há nada naquela praça
que aquela couraça desfaça:
nem o pão que assa,
nem a cachaça.

A passageira, sem graça,
recoloca sua mordaça.
E o passageiro, por pirraça,
abraça a sua carapaça.