6 de julho de 2011

Filho Único

Saudosa olho os cobertores, na cama que dormimos juntos. Você, pequeno, ao meu lado, frágil, doce e com um sorriso que me derretia até nos meus piores dias. Com lágrimas nos olhos, lembro-me do teu primeiro abraço, aquele gostoso, mesmo com teus braços pequeninos, tinha força, e me apertou forte. Nunca senti amor como senti naquele abraço, nunca vi tanta ternura em alguém como vi em você naquele momento. Te agarrei no ato: te enchi de beijos até você fazer aquela careta: na verdade, eu sabia que você não gostava, mas eu amava tua careta e fazia de propósito só para ver você fazê-la. Pego tuas roupas, que ainda tem cheiro de você. Aquele perfume que comprei pra você, de doce fragrância, sutil, mas penetrante. Era um dos teus charmes, você ficava todo bobo vendo a atenção que todos te davam por causa dele.
Lembro perfeitamente da tua cara amassada logo após acordar. Você sentava na cama, levantando-se vagarosamente, esfregava os olhos. Olhava ao redor, mirava teu olhar sonolento em mim, e ia, aos poucos, exibindo aquele sorriso. Como descrever a sensação que teu sorriso me proporcionava? Teu sorriso era o único que podia me tirar do mau humor, era o único que tinha a capacidade incrível de iluminar meu dia; acordar e te ver olhando pra mim daquela forma, transmitindo tanto amor sem dizer uma palavra, e então você sorria: e eu sabia: meu dia estava ganho ali. Tudo que passei, tudo que sofri pra ficar contigo, valia ao te ver assim pela manhã.
Então vejo teus sapatos. Lembro dos teus primeiros passos nele, hesitantes, mas firmes. Eu te esperava num canto da sala e você vinha, aos tropeços, mas determinado a chegar a mim. Eu te apoiava, gritava, e você parece que me entendia, pois olhava com furor nos olhos, e franzia o cenho, e vinha quase que cavalgando! Eu ficava estupefata com tua persistência, pois tombava, levantava-se sozinho e vinha no mesmo ritmo. Quando chegava perto, já vinha de braços abertos; ao chegar, dava-me o abraço mais apertado e a gargalhada mais gostosa. Tua gargalhada ecoava na minha cabeça o dia inteiro, e dava-me forças para suportar o dia. Pegava-me sorrindo feita boba aos cantos, lembrando do teu rosto de anjo e do som da tua risada.

5 de julho de 2011

der Reue

  Estou cansada dele falando comigo como se eu fosse algo, não alguém. Quem ele pensa que é para me tratar assim, como um objeto? Que eu fiz a ele para ser tratada assim? Só penso no bem-estar dele, faço o possível e impossível para agradá-lo. E o que ganho? Apenas ignorância e maus tratos. Meu pulso ainda dói da última vez que ele brigou comigo. Ele fica com aqueles olhos insanos, eu me assusto quando ele fica assim, dá medo. O que dói mais é meu coração, que continua incansavelmente a apanhar, sem reagir. O que infernos posso fazer se o amo? Devo estar fazendo algo de errado mesmo. Não consigo agradá-lo. Está começando a ficar insuportável viver assim.Aquela vagabunda continua sentada na frente da porta do meu quarto, arranhando-a com aquelas unhas compridas de puta. Canso de dizer pra ela cortar aquelas garras, e ela me ouve?! Juro que se estiver pintada de rosa ainda, arranco aquela merda na base da porrada. Aquela idiota pensa que ainda tem 16 anos, pra ficar usando aqueles vestidos curtos e se maquiando como uma putinha com hormônios a flor da pele, louca atrás dum macho pra foder. Ainda quer reclamar quando a trato mal! Maldita hora que fui me apaixonar por essa desgraçada: só estragou minha vida e me deu dor de cabeça.
  Eles estão brigando novamente. Todo final de semana é a mesma coisa. Ele chega num porre federal e ela está em casa chapada para relaxar após uma semana de trabalho numa jornada de 12 horas. Basta ela piscar para ele enfurecer feito louco e berrar feito doente. Não há necessidade de motivos: um oi é motivo suficiente para uma enxurrada de palavrões e para começar o barulho de móveis quebrando. Barulho que sempre me acorda na madrugada, quando estou no décimo sono. Idiota que fui, tinha que ter alguma coisa errada quando me mudei para esse barraco aqui. O aluguel tava bem barato, até que bem localizado, mas a imobiliária maldita não me falou que eu tinha vizinhos doentes que adoravam fazer barracos no meio da madrugada dum fim de semana! O pior não é nem a briga, é quando eles fazem as pazes. Aqueles putos transam a noite inteira, parecem cachorros no cio. A merda, é que ela é gostosinha e suporta um bêbado ridículo como aquele.

"Lonelitude"

Sinto como se ninguém se lembrasse da minha existência. Isso me machuca um pouco, mas acho que já acostumei um pouco com essa dor. A estranha sensação de andar na multidão e parecer invisível perante todos é meio perturbadora, e não entendo direito o que fiz pra sentir-me assim. O sentimento de ninguém se importar comigo, sentir minha falta ou ter um pequeno afeto por mim é doloroso, mas acostumei também. Ou ainda essa solidão ambígua, que ao mesmo tempo em que me reconforta me dá ânsia, ao mesmo tempo em que me liberta me sufoca. Esta vontade de arriscar em algo diferente, mas que a imaginação e a impaciência não permitem concretizar, ou simplesmente não saber interpretar os fatos, ou, ainda, apenas não desejar interpretá-los. Aquela falta de vontade de viver, que habita cada parte do meu ser, corrói e machuca, e cresce imensamente sem razão aparente; parece que a alimento pois a sinto pesando em meu estômago, como algo indigesto; parece que só penso nisso, pois a sinto latejando em minha cabeça a cada minuto da noite, num vai-e-vem calmo e persistente e que ecoa e me irrita.
A rotina cansativa e desprezível, em que cada dia segue monótono, uniforme: apenas um dia após o outro. Isso suga minha joy d'vivre, esmigalha o apreço que tenho por mim mesmo, sinto-me um nada, insignificante perante aos outros e à mim. Não aproveito minha própria vida, obviamente única: não amo, não tenho sentimentos, ninguém significa um pouco mais do que um simples alguém, não corro, não me cuido, não tenho autoestima, não sou útil a ninguém, não amo. Minha impaciência e meu sarcasmo já natural apoderam-se de meus sonhos e chupam-lhe a essência. Deixam-me com esta realidade que repudio por mostrar-me quem sou: uma pessoa mesquinha e asquerosa, desprovida de encantos e qualquer espécie de charme. Preciso entender.
Conduzo-me para o meu interior e vejo apenas escuridão, como numa caverna onde não é possível enxergar sua própria mão em frente do seu rosto. Estranhamente, uma inexplicável luz iluminava algumas partes dessa úmida caverna. Vejo mágoas depositadas em um canto, o acúmulo de anos me mostra uma pilha imensa, maior do que eu jamais imaginaria. Vejo que as guardo desde a mais tenra idade, algo que deveria me incomodar: mas por ser a pessoa que sou, sinto uma espécie de orgulho por ter tal capacidade, jamais esquecendo quem um dia me magoou d'alguma forma. Um pouco mais a frente, observo vários murais, em cada um pendurado milhares de pequenas notas e, em cima, li rancores. Meu ego inflou-se, vendo tantos murais com tantos rancores guardados, sorri de alegria com minha aptidão, para mim, impressionante. Continuo andando, não enxergo um enorme barranco e caio nele.
Acordo suado, assustado. Resolvo terminar com o que comecei. Pego, novamente, todas as pílulas que roubei discretamente da farmácia em que trabalho. Nunca irei mudar, sempre terei essa espécie de asco de mim mesmo, não posso viver a esmo. Dirijo-me à cozinha, encho um copo com água. Não agrado aos outros, nem a mim, não dá pra viver assim. Volto ao quarto, sento-me na cama. Ainda se alguém sentisse minha falta, mas sou, de fato, um bosta. Com o punhado de comprimidos numa mão e o copo com água na outra, penso mais um pouco: hesito. Hesito por quê, se não tenho mais ânimo pra viver? Não, não. Viro os comprimidos, e em seguida a água. Deito na cama e rapidamente adormeço.
Adormeço com o sono mais leve que tive nos últimos anos: todo o ódio que habitava dentro de mim, deu lugar a uma paz imensa, um imenso deserto onde senti a suave e refrescante brisa noturna. Alegrei-me - outro fato raro! - pensando que viverei, na morte, assim pela eternidade, e esse pensamento me deu ânimo de viver, morto enfim.
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escrito em 2 de dezembro de 2009.

Gusto

Estou me cortando pela décima e terceira vez. É quase um ritual: nos momentos de stress ou que necessito de um pouco de prazer, ou em ambos, corto-me. Não consigo compreender o porquê do susto das pessoas quando lhes conto. Descrevo, então, minha derradeira experiência.
Você consegue me definir liberdade? A liberdade, para mim, é cortar-me. O prazer, para mim, é cortar-me. O alívio, para mim, é cortar-me. Quando tenho raiva ou estou sob grande stress, eu me corto. Meus problemas desaparecem, minha dor é prazer e meu sangue flui, livre, em correnteza. Minha cabeça acalma, meus músculos relaxam. Eu suo, excitada. O suor salgado mistura-se com o sangue quente: isso é um perfume divino para mim. Fico tonta em delírio ao perceber que eu exalo aquele perfume selvagem; eu naquele momento sou deusa, eu ali sou cadela, eu ali sou puta, mas sou a minha puta, eu ali me desejo: e me possuo. Meus músculos, agora, retesam, contorço-me loucamente na minha dança insana, masturbo-me numa ânsia bestial, chuto a garrafa de vinho, jogo-me nos cacos. Vinho tinto, sangue e suor: gozo. Uivo como loba no cio, grito meu tesão, aperto a lâmina com força, dilacero meu braço, o sangue quente jorra: gozo. Percebo que estou sangrando demais, excito-me: chupo, engulo, saboreio, delicioso, até a última gota. Nessa louca foda-suicida, percebo que estou empalidecendo, perdendo minhas forças. Súbita sede: lambo o vinho com sangue do chão: não faz muita diferença. Sinto que são meus últimos momentos, retiro então forças do meu desejo absoluto, esforço-me para o orgasmo final: e o consigo. Deitada sobre os cacos, ofegante e molhada (de sangue, suor, vinho e tesão), exaurida e completamente fodida, estampo o sorriso mais lindo que jamais dei, enquanto meus olhos fecham-se vagarosamente.
Vou-me lentamente, o que é ótimo, pois aproveito meus minutos derradeiros relembrando tudo que fiz nessa hora que passou. A hora que valeu minha vida. A hora que me fiz feliz. Vou-me com sorriso terno em meu rosto, sorriso de criança que ganhou o que quis. Chamar-me-ão de vagabunda louca, de puta desvairada, de rampeira maluca, ao me verem nua deitada (numa poça de sangue, vinho e tesão) com a mão esquerda em minha genitália encharcada e a direita na lâmina suja. Não entenderão a minha felicidade, não compreenderão que esse foi o momento de maior alegria em minha vida. Não enxergarão o prazer dos meus atos, nem a sanidade com que os cometi. Não verão a certeza com que os fiz, nem saberão que foi exatamente isso o que quis. Tentarão, em vão, procurar razões, explicações com lógica desconexa. Revirarão meu passado, verão na minha infância se fui abusada ou algo assim, então na minha adolescência, se tive algum distúrbio ou coisa do gênero. Sorrio, desmaiada, imaginando eles mexendo em minhas coisas, tentando achar alguma carta, nota, bilhete, algo que justifique meu ato de, segundo eles dirão, loucura ou de suícida alucinada. Buscarão por alguma droga,que possa ter-me transtornado mentalmente. Rio da ignorância deles, da estupidez em não verem o óbvio.
Eu só quis prazer, liberdade e alivio. Eu só quis foder, porra.
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escrito em 15 de novembro de 2009.

das Seil

O nó estava feito. Os fios torcidos amarrados fortemente ao encanamento que cruzava o corredor, o qual ligava a sala aos quartos. A cadeira estrategicamente posicionada embaixo e nela estava ela sentada. Cabeça em punhos com cotovelos apoiados nos joelhos, olhava para cima, pensativa. O teto era alto, devia dar uns três metros. Com sorte, pensou ela, eu quebro e não sinto nada, e sorriu com a ideia. Nunca havia tido sorte na vida, e, não sabia bem porquê, acreditava que hoje teria.
Seus olhos marearam quando começou a repassar sua vida. Lembrou de quando conheceu ele e assustou-se "como faz tempo!". Há 10 anos, ela tinha o hábito de correr pelo parque todas as manhãs. Colocava Back in Black, que parecia lhe dar um gás extra, a animava correr. Único problema que tinha a mania de correr olhando para baixo e foi assim que o conheceu: esbarrou nele que ambos foram para o chão. Ela enrusbeceu no ato, e mais ainda percebendo que o homem que havia esbarrado era realmente lindo. E apaixonou-se vendo-o levantar-se rapidamente para ajudá-la, todo preocupado e gentil. Dez meses depois, estavam casados.
Limpou com um lenço as lágrimas que escorriam insistentemente, mas continuou a sessão. Um ano após casados, ela engravidou; não foi nada planejado mas eles ficaram tão contentes como se fosse. Oito meses depois, Marina nascia para alegria absoluta do casal, que ficou extasiado ao ver aquela criaturinha tão pequena, berrando o ar para fora dos pulmões em gritos estridentes.
No chão, ela estava sentada com as pernas no tórax, as quais abraçava fortemente, com a cabeça enfiada entre elas urrava toda dor que sentia dentro de si; as lágrimas já não mais escorriam, mas pulavam de seus olhos azuis. Ela não queria mais, mas não podia evitar, e também agora não conseguia levantar-se para terminar o que havia começado.
Aos sete anos, a pequena Marina era uma menina linda e encantava a todos com seu charme e sua inteligência. Porém, era muito curiosa e, de vez em quando, muito simpática. Foi sua simpatia e doçura que conquistaram M, um homem moreno e alto, de olhos negros melancólicos, de rosto firme sem expressão e com seus 32 anos. M que passava diariamente de bicicleta pela casa do casal, muitas vezes parando e observando a pequenina Marina pelo pequeno buraco que havia na cerca. M que raptou Marina.
Ela virou rapidamente para o lado e vomitou todo o uísque tomado para angariar coragem. Em posição fetal, ficou deitada no chão, chorando alto pela dor imensa que sentia: dor que rebatia no interior do seu coração então oco. Queria sentir dor física, queria sofrer, queria se bater, queria se cortar, mas nada fazia pois lhe faltavam forças. E como num filme de terror, continuou com as lembranças inevitáveis.
Só encontraram o pequeno anjo três meses depois, largada numa vala, achada por um andarilho que por ali passava. M nunca foi achado. O mundo dela desmorou: não tinha mais aquele serzinho para iluminar seus dias, o quarto violeta, recheado de livros e brinquedos, que ela pedira estava agora vazio. Ninguém para fazer aquela bagunça de brinquedos espalhados por todo canto da casa, ou colocar o som alto de algum rock and roll clássico.
Nesse momento, entre as lágrimas, ela sorriu: lembrou-se de como ela e seu marido sempre a mostraram grandes nomes da música, de Coltrane a Neil Young, e como ela passava horas apenas apreciando o que ouvia. Ou como saia dançando toda sorridente pela sala quando colocava Zeppelin. As lágrimas voltaram com força. Por que estava lembrando dessas coisas agora?!
O marido dela nunca conseguiu superar esse acidente que marcou suas vidas como ferro quente, a prova disso foi ele ter se entregado ao alcoolismo. Foram poucos meses de porres homéricos, de dormir na porta de casa por não conseguir abrí-la, de perder emprego e isolar-se no seu próprio mundo regado a muito álcool. Poucos meses, pois tinha o terrível hábito de dirigir extremamente alcoolizado: esse foi o principal motivo de seu enterro ter sido com caixão fechado. Foi o golpe final para ela: perdera as duas pessoas mais importantes da sua vida em questão de meses; seus sonhos desabaram, seu castelo desmoronou. Não havia mais rei nem princesa, e a rainha não suportava a dor da perda. O que havia conquistado nesses anos não fazia mais sentido, seus amigos mostraram-se desnecessários, seus familiares não eram aqueles os quais ela queria ter ao seu lado. Não mais comia, não mais bebia (além de garrafas Johnny Walker), não mais dormia, não mais sentia, não mais amava, não mais desejava, não mais vivia. Sua casa revelara-se seu caixão.
Cansada, reuniu suas últimas forças para seu último esforço. Engatinhando, escalou a cadeira. Com dificuldade, colocou-se de pé. Pôs em volta do seu pescoço. Pulou: obviamente não quebrou: a corda era curta, e para ela era todo um processo mais prático, nunca pensaria que é necessário todo um cálculo envolvendo peso, altura, queda e tamanho da corda. Hoje, ela também não teve sorte.
Agonizou alguns minutos enquanto sufocava. Hm, não é um sensação agradável, pensou enquanto seu corpo automaticamente tentava buscar qualquer quantidade de ar possível. Debateu-se, chutou a cadeira longe. Seus globos oculares começaram a saltar levemente, enquanto a corda ia lentamente comprimindo suas carótidas e seu cerébro inchando. A falta de oxigênio a faz desmaiar.
Nos minutos seguintes, nada sentiu. Estava livre: não mais sofreria.
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escrito em 3 de novembro de 2009.

Âncora

Do alto daquele edifício, ela admirava as nuvens. Gostava de fazer aquilo, há anos fazia. Sentava-se numa beirada, cruzava suas pernas, apoiava-se com as mãos atrás. Colocava seus óculos escuros, ligava seu iPod: ouvir Nick Drake nesse momento para ela era especial: sua voz doce a relaxava. Adorava relaxar lá. Mas hoje o objetivo não era só admirar as nuvens.
Ela lembrava cada palavra que ele tinha dito: da peculiar expressão de tristeza sobre seu rosto, com aquele olhar que berrava seus sentimentos. Olhos úmidos, rosto tenso, mas resoluto em seu objetivo. Desvantagens de conhecê-lo tão bem: sabia o que viria. Deduzia por cada movimento que ele fazia: gestos com as mãos, que estavam nervosas, olhares rápidos, que não conseguiam encarar seus olhos de jade. Seus lábios desenhados trêmulos: lábios que ela adorava.
Ele estava sentado, pois suas pernas bambeavam, ela já tinha visto. Sentou-se no colo dele e ele abraçou-a forte. Ela pode ouvir seu coração descompassado, fraquejante. Era algo que se esvaia.
Chorou, chorou como se sua família houvesse a abandonado. Chorou como se fosse a pessoa mais desprezível desta terra e as pessoas a olhassem com repulsa. Chorou com ódio, como só as pessoas agora solitárias podem chorar. E quando acabou a água do seu corpo, chorou sangue: todo aquele sangue que um dia ela havia derramado por ele, no máximo dos seus esforços para fazê-lo bem.
Amor intenso tranforma-se facilmente em ódio absoluto: não mais desejava afagar seus cabelos, mas arrancá-los com sua mãos aos montes, infligir-lhe a maior dor. Não mais beijar aqueles lábios doces, mas mordê-los num furor descontrolado. Não mais ver seus céus por trás de vidros, mas arrancá-los numa histeria descomedida. Não mais abraçar seu corpo claro, mas arranhá-lo até desfigurá-lo por completo.
Ela estava pensativa lá em cima. Havia considerado bastante, e decidido que iria ferí-lo onde o marcaria por todo sua vida: sua alma. Curiosamente, no seu iPod tocava "heart and soul: one will burn". Talvez ambos, pensou ela, sorrindo consigo mesmo. E em movimentos rápidos, como âncora de navio, afundou na imensidão: ainda assim, sorridente: agora estava livre.
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escrito em 15 de outubro de 2009.