17 de setembro de 2011

Disorder: Parte III

Maybe I was born to hold you in these arms
The Swell Season

Então eu estava vagando novamente pelas ruas imundas com as quais já me habituei e as quais cujos habitantes amigos tornei-me, queridos são os ratos que passeiam pelo meu corpo e esquentam minha pele pútrida e dela alimento faço para alegria desses tão desgraçados quanto eu e sim, alimento-os com minha pele... E você, seria capaz de gesto tão nobre seria capaz de doar um pedaço de ti para o próximo que clama desesperado pela salvação que em ti tem de sobra? Não e eu aposto que não afinal somos todos tão egoístas olhando apenas e unicamente para nossos umbigos não nos importando com o maldito que morre de fome a nossos pés. E como eu estava dizendo eu estava vagueando novamente pelos becos asquerosos dessa cidade quando ao longe a avisto e fico pasmo e se minhas fracas pernas pudessem fixar-se no chão como se a um fantasma eu tivesse visto, nesse momento elas se fixariam o que obviamente não ocorreu.
Era ela, ela! Exuberante, resplandecente, cabelos sobre os ombros corrente no pescoço com o berloque que eu havia lhe dado há séculos como símbolo do nosso amor mas por que ela o usaria hoje em dia? quero dizer, todo o mal que eu a fiz a tratando como lixo (mesmo o contrário tendo acontecido também fatos que me magoaram a alma e que nunca esquecerei e que não justificam [muito] eu ter dado o troco da mesma forma, que infantilidade) deus será que ela ainda sente algo por mim? Mas se sente deve ser desprezo e nojo e a vontade de me ver morrendo na frente dela para que então ela possa pisotear-me e rir freneticamente da minha cara fodida. Seu porco escroto como ousa a pensar isso dela! sabe que ela nunca pensaria assim de pessoa alguma mesmo sendo você a pessoa, se bem que olhando pra ti há de se ter dúvidas sobre se isso é realmente uma pessoa ou o que sobrou dela ou se há resquício de humanidade sobre esse manto de sujeira e de rancor e de ironia e de cinismo e de fome.
Durante esse meu estúpido embate interior sobre a possibilidade dela ainda ter algum sentimento por mim vejo que ela começa a andar e, meu deus, que graciosidade que delicadeza a rua desliza ao seu cadenciado caminhar e petrifico admirando-a. Os próximos segundos foram tão estupidamente rápidos que custo a lembrá-los exatamente mas tentarei ser fiel aos fatos conforme minha memória me ajuda ou me atrapalha não sei bem ao certo, tenho um pequeno problema que minha mente é mais rápida do que eu e quando vejo já estou floreando pequenos relatos transformando-os em grandes contos épicos, mania desde a infância. Então como comentei os próximos segundos foram decisivos para o final desta história com muitos fatos ocorrendo em pouquíssimo tempo; ela foi atravessar (deus, que caminhar) a rua rumo à pracinha do outro lado quando duas incandescentes bolas grandes surgiram no inicio da rua e aproximavam-se numa velocidade anormalmente rápida. Eu não sei como mas meu cérebro teve a capacidade de ver o que ia acontecer com uma precisão matemática, e eu não podia ficar parado e então larguei meu cobertor e tirando forças de região desconhecida por mim corri o mais rápido que pude e, acredite, esse rápido era realmente rápido. Devo ter gritado algo ou ela talvez tenha percebido o perigo (um sexto sentido sabe aquele calafrio na espinha?) porque ela olhou para o carro e congelou e eu um dia descobrirei porque as pessoas diante de perigo iminente travam, deus ela teria me poupado muita coisa caso tivesse apenas corrido mais um pouquinho para terminar a travessia mas não ela resolve travar no meio da rua.
Não lembro corretamente mas provavelmente eu devo tê-la empurrado momentos mínimos antes da batida: senti o ferro em minhas pernas e então o vidro em minhas costas, lembro de ter dado umas piruetas (e agora isso até soa engraçado) e ter passado por cima do carro e então de ter me espatifado na rua. A sensação mais engraçada que tive na vida foi nesse momento, pois eu, acima de meu corpo como se tivesse em galhos de alta árvore, vi o que aconteceu em seguida como o carro desgovernando-se com sangue no vidro e batendo numa coluna enorme e vi o motorista passando ao meu lado, lá em cima, e então ela em choque sentada na beirada da calçada e alguém num prédio próximo abriu a janela e chamou excitado outro alguém para assistir ao que havia acontecido, talvez tenha sido eles que chamaram as ambulâncias e tudo mas acho que não. Olhei para cima e tinha uma luz tão bonita lá, senti vontade de ir até ela mas algo me impedia e quando olhei para mim lá embaixo vi que um paramédico amedrontado mas persistente me ressuscitava.
É engraçado estar em coma: você ouve tudo mas não tem reação alguma ao que ouve e eu acho que tava tão fodido que só lembro fragmentos do que ouvi, vozes desconhecidas comentando algo d’eu já estar há dois meses naquele estado sobre o trabalho que tiveram pra me limpar e sobre como havia uma mulher que esteve ao meu lado durante todos os sessenta dias do coma e como ela comentava coisas comigo e chorava bastante e do bonito pingente que ela tinha pendurado em uma corrente no seu pescoço. Ouvindo isso, eu sorri (não sei se apareceu pra fora, mas por dentro eu sorri).
Acordei, abri meus olhos lentamente e vi um anjo, pensei que havia morrido, o que seria uma alegria, mas então vi que não era um anjo; aliás, era um anjo, mas não aquele anjo, era ela e então, eu sorri, e ela sorriu de volta e ver aquele sorriso, vê-la ao meu lado com sua mão na minha, eu descobri: descobri que queria viver novamente.
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Escrito em 13 de junho de 2010. 

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